Catedrais Medievais
Cluny, como viviam os monges da Jerusalém celeste encarnada (5)
continuação do post anterior O monetário oriundo das doações que afluiu para Cluny foi também direcionado pelo abade para os mais pobres. Como afirmei no início desse texto e volto a insistir, a economia monástica não visava o lucro, estava voltada para a comunidade ‒ num sentido mais amplo, para o corpo cristão.
Reitero: nem o abade, nem os monges, nem seu tempo tinham a mentalidade capitalista. É inútil vê-los com esse olhar moderno. Não era esse o foco.
Há de se fazer um esforço de compreensão, é necessário. Historiador, liberte-se de suas amarras materiais, sinta o ambiente e as prioridades de então. Coloque-se no lugar, pense na Idade Média, não a Idade Média (LIBERA, 1999: 68).
Perde-se perspectiva, claro, mas ganha-se compreensão, amplia-se o horizonte do entendimento histórico.
Assim, pelo contrário, cada vez mais ricos, os monges deveriam ter mais tempo para os mortos, para a liturgia, para seu objetivo primeiro: salvar as almas do povo, protegê-las contra os perigos invisíveis ‒ lembre que, para os homens da Idade Média, o mundo invisível era mais importante que o visível. Claro, este perecerá, aquele permanecerá, permanece, é eterno.
Planta de Cluny III
Mais ricos, eles deveriam se libertar ainda mais das tarefas domésticas para se dedicar ao Opus Dei, ao canto. E eles cantavam. Cantavam e cantavam, cantavam cada vez mais, “a plenos pulmões”, todos juntos, em uníssono, seis, oito horas, sete vezes por dia (DUBY, 1979: 80).
|
Exibição no 1100º aniversário da abadia de Cluny |
Seu coro era másculo e violento, um verdadeiro canto de guerra ‒ uma guerra espiritual e ininterrupta contra as forças do mal. Esse canto buscava o sagrado, deveria harmonizar-se com os hinos dos serafins que rodeavam Deus (DUBY, 1988: 26).
Por esse motivo, o trabalho físico dos monges em Cluny passou cada vez mais a ser simbólico (DUBY e ARIÈS, 1990: 58). Além de embelezar o santuário ‒
a casa de Deus deveria ser semelhante à luz transbordante e gloriosa do céu do Senhor ‒ mais livres, os monges poderiam também realizar melhor outro ideal cluniacense: o da caridade, a caridade beneditina (DUBY, 1990: 113).
EXEMPLOS DE VIDA DOS ABADES SANTOS DE CLUNYSanto Odilon, modelo de abade de Cluny
Santo Odilon, um abade de Cluny que modelou a Cristandade
Santo Odilon: leão pela causa da Igreja e escravo de Nossa Senhora
Santo Odon: resplandecente abade de Cluny
Ao analisar o orçamento de Cluny no final do século XI, Georges Duby descobriu uma
quantidade surpreendente de pessoas que estavam ligadas à riqueza alimentícia cluniacense: serviçais (que, além de usufruírem da caridade, também trabalhavam no mosteiro para sustentar a família),
pensionistas pobres, visitantes de passagem, dignitários ricos e peregrinos nobres (e seus cavalos), crianças entregues por sua linhagem (DUBY e ARIÈS, 1990: 63),
todos fielmente alimentados como os monges! |
Reconstituição de Cluny |
Cluny realizava verdadeiras epopéias distributivas: as esmolas.
Na Quaresma, por exemplo, pasme, leitor, 16 mil indigentes repartiam 250 porcos salgados preparados pelas duas cozinhas do mosteiro. O consumo de pão era igualmente desmedido: 2 mil cargas de asnos, muitas vezes oriundos de longe (DUBY, 1990: 109).
Por esse motivo, a economia cluniacense rapidamente entrou em crise ‒ some-se a isso o fato de as cobranças das famílias camponeses instaladas nas terras do mosteiro serem muito suaves (as corvéias eram insignificantes, lembrem-se do ideal de caridade), existiam muitos alódios nos arredores (terras camponesas livres de cobranças), e
um terço do excedente ainda era destinado aos hóspedes e às esmolas para os pobres (DUBY, 1990: 110).
Sobre os prédios de Cluny (celeiro, torres, fachada, etc.) ver também:
Abadia de Cluny: 'alma da Idade Média - I
Abadia de Cluny: 'alma da Idade Média - II
Abadia de Cluny: 'alma da Idade Média - III. Contribuições para o progresso temporal: celeiro, moinho e outras invenções
Papel de Cluny na formação da Idade Média ‒ 1
Papel de Cluny na formação da Idade Média ‒ 2
Cluny comemora 1100 anos envolta numa aura de veneração
Por fim, as necessidades de consumo da abadia (grãos e vinho) estimularam a produção agrícola local. Os camponeses prosperaram, não só vendendo sua produção para os monges mas também trabalhando no canteiro de obras que se tornou a construção daquela imensa igreja abacial (DUBY, 1990: 115).
(Fonte: Ricardo da Costa (Ufes), "Cluny, Jerusalém celeste encarnada", in: Revista Mediaevalia. Textos e Estudos 21 (2002), p. 115-137 (ISSN 0872-0991).
As fontes bibliográficas utilizadas estão elencadas no último post desta série.
continua no próximo post
Desejaria receber as novas postagens de 'Catedrais Medievais' em meu Email gratuitamente
GLÓRIA CRUZADAS
CASTELOS ORAÇÕES
HEROIS
CONTOS CIDADE SIMBOLOS
loading...
-
A Decadência De Cluny E O Ocaso Da Cristandade Medieval (7)
continuação do post anterior A cristandade alargava-se, as cidades eram novamente palco de transformações sociais. Nascimento da burguesia, novo impulso comercial. Esse arranque teve início por volta do ano mil. Para as mentes de então, estava...
-
São Bernardo: Reação Para Segurar A Queda De Cluny (6)
continuação do post anterior De qualquer modo, a independência, todo esse luxo e opulência e especialmente a velocidade com que Cluny passou de uma economia baseada na exploração direta de um vasto domínio (910-1080) para uma economia monetária...
-
Cluny: O “fasto” E A “hierarquia Angélica” Na Jerusalém Celeste Encarnada (3)
Continuação do post anterior A expansão cluniacense Até 926 Bernon aclimatou os irmãos no espaço, na pequena capela existente. Preparou-os para sua missão. Edificou a primeira igreja (Cluny I). Não se sabe nada nem da capela (Cluny A) nem da...
-
Cluny: O “exército Do Senhor” Na Jerusalém Celeste Encarnada (2)
Fundação de Cluny: a doação de Guilherme, duque da Aquitânia O mais importante centro da reforma monástica foi Cluny. Raul Glaber (†1044), o melhor historiador do ano mil, também ele cluniacense, nos conta que a abadia de Cluny era um asilo...
-
Cluny, A Jerusalém Celeste Encarnada (1)
Houve uma igreja medieval que foi a maior ‒ e no juízo dos contemporâneos ‒ a mais bela e esplendorosa da Idade Média. Ela foi uma obra prima do estilo românico e dela brotou o estilo gótico. Foi a igreja abacial de São Pedro de Cluny, mais...
Catedrais Medievais