Cluny: o “fasto” e a “hierarquia angélica” na Jerusalém celeste encarnada (3)
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Cluny: o “fasto” e a “hierarquia angélica” na Jerusalém celeste encarnada (3)


Continuação do post anterior

A expansão cluniacense

Até 926 Bernon aclimatou os irmãos no espaço, na pequena capela existente. Preparou-os para sua missão. Edificou a primeira igreja (Cluny I). Não se sabe nada nem da capela (Cluny A) nem da igreja (IOGNA-PRAT, 1998: 107).

Nesse mesmo ano de 926 Bernon legou Cluny a seu discípulo Eudes (927-942), já citado. Durante seu abaciado, Cluny recebeu um importante privilégio: o papa João XI (931-936) outorgou-lhe em 931 um direito de reforma: a partir de então, qualquer mosteiro que solicitasse ao abade cluniacense uma reforma monástica seria incorporado à casa mãe. O mesmo se daria com qualquer monge que desejasse ser acolhido (IOGNA-PRAT, 1998: 101).



Este fato possibilitou a Cluny criar uma rede de mosteiros, um corpo monástico, um exército, como disse Raul Glaber, a ecclesia cluniacensis.

Eudes anda contribuiu de forma decisiva para a formação da espiritualidade cluniacense. Seguindo o modelo apostólico, Eudes traçou um paralelo da vida monástica com o mundo angélico: os monges deveriam ascender sete etapas sucessivas em busca da felicidade angélica para alcançar o Cristo.

Em sua obra Occupatio, ele afirma que a Páscoa era celebrada todos os dias pelos cluniacenses em uma igreja que era a “Jerusalém descida dos Céus” (HEITZ, s/d: 132).

Aymard (942-954), Mayeul (954-994) e Odilon (994-1049) prosseguiram o trabalho dos dois primeiros abades com tal afinco que, já no final do século X, Cluny agrupava uma vasta congregação de abadias pelo território francês (PACAUT, 1996: 394).

Um ponto importante: com essa expansão, os cluniacenses tornam-se senhores, como castelões e eclesiásticos, pois se apropriaram das antigas prerrogativas do poder real ausente, especialmente a justiça (IOGNA-PRAT, 1998: 102).

Naturalmente isso aconteceu por outras vias, pois a defesa de sua liberdade, isto é, de sua emancipação frente aos poderes instituídos, deu-se através de armas espirituais, especialmente sua participação nos movimentos da Paz de Deus e Trégua de Deus (COSTA, 2001) e, um pouco depois, na divulgação da Primeira Cruzada para reconquistar Jerusalém.

Os monges vinham de todas as partes. Em pouco tempo o número se multiplicou: dos seis do tempo de Bernon (910) para 132 no tempo de Mayeul (948).

Era necessário ampliar a igreja. Cluny II foi construída nos anos 955-991, seguindo os moldes da planta do convento de Saint-Gall.

Tinha 63 metros de comprimento. Consagrada em 981, a partir de 986 temos notícia do primeiro tribunal provado, um claro indício da feudalização dos poderes (DUBY, 1990: 143-179). Os monges tornavam-se senhores.

A alimentação em Cluny e o enriquecimento da região. Cluny III

E senhores com fausto. A batina dos monges, tecida de boa lã, era renovada todos os anos; os tecidos eram comprados de fora, pois a criação de carneiro era pouco desenvolvida na senhoria cluniacense (DUBY, 1990: 110).

Um luxo para a época. Graças ao monge Ulrico de Zell, secretário de São Hugo (1049-1109), abade, sabemos um pouco mais da vida no mosteiro. Ele redigiu por volta de 1080 as Très Anciennes Coutumes, descrevendo sua vida cotidiana, sua vida material. Dados preciosos.


EXEMPLOS DE VIDA DOS ABADES SANTOS DE CLUNY

Santo Odilon, modelo de abade de Cluny
Santo Odilon, um abade de Cluny que modelou a Cristandade
Santo Odilon: leão pela causa da Igreja e escravo de Nossa Senhora


Nesse tempo já viviam cerca de 300 monges em Cluny ‒ chegariam a 450 no tempo de Pedro, o Venerável (1122-1155). Uma grande expansão. Proibida a carne de quadrúpedes ‒ exceto para os fracos e doentes ‒ a dieta dos monges era rica e variada.

Os cluniacenses foram favorecidos pela multiplicação de trabalhadores nas zonas rurais e a abundância de matérias orgânicas nos séculos XII-XIII: os rendimentos da terra melhoravam, passando de dois para um do período carolíngio a quatro para um em Cluny (RIERA-MELIS, 1998: 390).

Segundo Ulrico, de primeiro de outubro até a Quaresma ‒ dias curtos e frios, a comunidade se reunia no refeitório apenas uma vez por dia nas jornadas de trabalho e duas nos dias de festa. A dieta era a seguinte:

1) Almoço (na sexta hora, por volta do meio-dia): dois pratos quentes (sopa de legumes e guisado de legumes). Como sobremesa, frutas e legumes;

2) Às terças, quintas, sábados e domingos: o “geral” (quatro ovos, uma ração de queijo cru ou cozido) e

3) Aos domingos e quintas: peixe (quando obtido a preço razoável nas feiras locais)

Todos esses pratos eram acompanhados de pão branco e uma taça grande de vinho. Isso no inverno. No verão (da Páscoa a setembro) eles tinham duas refeições diárias, uma ao meio-dia outra nas vésperas ‒ as horas eram divididas de acordo com as horas das orações: matinas (meia-noite), laudes (três da manhã), primas (primeiras horas do dia, ao nascer do Sol, cerca de seis da manhã), vésperas (seis da tarde) e completas (na hora de dormir) (TUCHMANN, 1990: 56)

O jantar das vésperas era frugal: restos de pão, de vinho e frutas da refeição. No fim do dia os monges poderiam ainda tomar um cálice de vinho antes de se recolherem (RIERA-MELIS, 1998: 398-399).


Sobre os prédios de Cluny (celeiro, torres, fachada, etc.) ver também:
Abadia de Cluny: 'alma da Idade Média - I
Abadia de Cluny: 'alma da Idade Média - II
Abadia de Cluny: 'alma da Idade Média - III. Contribuições para o progresso temporal: celeiro, moinho e outras invenções
Papel de Cluny na formação da Idade Média ‒ 1
Papel de Cluny na formação da Idade Média ‒ 2
Cluny comemora 1100 anos envolta numa aura de veneração


Além disso, a abadia sustentava uma considerável multidão.

Os novos recursos que entravam na economia cluniacense ‒ oriundos dos dízimos das abadias satélites, doações inglesas (especialmente Henrique I [1100-1135], que ajuda a construir Cluny III [IOGNA-PRAT, 1998: 103]) e das mil peças de ouro anuais doadas pelos castelhanos (DUBY, 1990: 113) ‒ enriqueceram-na. A abadia virou um imenso canteiro de obras. Cluny III foi construída para tornar-se uma “pequena Roma” (IOGNA-PRAT, 1998: 114).


A igreja tinha mais de 187 metros de comprimento. Naturalmente, esta grandiosa obra arquitetônica pareceu aos contemporâneos a “Jerusalém celeste” (HEITZ, s/d: 134).

Tudo em Cluny sugeria o além, as sagradas coisas divinas, os anjos. Os próprios monges eram considerados anjos. Como intermediários perfeitos entre o mundo terrestre e o celeste, a origem da concepção da nova igreja não poderia deixar de ser um milagre.

Hildebert de Lavardin, bispo de Mans e de Tours (1055-1133) descreveu em sua obra La Vîe de l'Abbé Hugues a maravilha: São Pedro apareceu ao monge Gauzon em sonho e ordenou-lhe que procurasse seu abade Hugo e o convencesse a construir Cluny III.

Planta de Cluny III, por volta de 1600


Semi-paralítico, Gauzon ouviu do santo que, tomando essa iniciativa junto ao abade, ele seria curado e ganharia ainda mais sete anos de vida. No sonho, o monge chegou a ver São Pedro medir o comprimento e a largura da nova igreja abacial, determinando, calculando, precisando o espaço (HEITZ, s/d: 134).

Veja vídeo
Vísita virtual a Cluny III
O sonho de Gauzon com São Pedro ordenando e medindo a abadia monumental legitimou Cluny como centro de peregrinação, de devoção, de luz. Espiritualizou o surto agrícola e comercial da região cujo principal responsável foi o mosteiro.


Mostra-nos também que o mundo clerical recebeu, a princípio, a reforma cluniacense de braços abertos. Daí sua rápida expansão.


(Fonte: Ricardo da Costa (Ufes), "Cluny, Jerusalém celeste encarnada", in: Revista Mediaevalia. Textos e Estudos 21 (2002), p. 115-137 (ISSN 0872-0991).

As fontes bibliográficas utilizadas estão elencadas no último post desta série.

continua no próximo post

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